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Amo Minha Vagina

Minha vagina parece-se com uma flor chamada boca-de-leão. É linda. Seu apelido é pepeca, como tantas outras por aí. No entanto, nem sempre foi assim. Na minha infância chamava-se “lá em baixo”, às vezes “perereca”, raramente vagina e muitas vezes “aí”, acompanhado do “tira a mão dAÍ, menina”! Durante a adolescência conheci outros apelidos que levavam a crer que a corpa com vagina é suja e vergonhosa. Ainda assim demorou mais um tempo para que eu conhecesse o tal do clitóris, mesmo ele tendo me acompanhado durante toda a vida. Sim, isso parece estranho, mas infelizmente é uma realidade comum. Quando, na intimidade do lar da infância, temos a oportunidade de ver nossas mães nuas no banho, por exemplo, é ao monte pubiano que temos acesso, não aos detalhes da vulva: lábios, clitóris, uretra, entrada da vagina. Mais tarde na escola conhecemos o “sistema reprodutor feminino”, normalmente representado por um desenho de um corpo feminino “cortado ao meio”, exibindo útero, ovários e canal vaginal. Aprendemos que o “lá em baixo” está lá para reproduzir, aninhar e parir bebês, e para fazermos xixi. Pela minha experiência e conversando com muitas mulheres a palavra prazer nunca é mencionada. Ainda na escola temos acesso à imagens de vaginas doentes, deformadas por sífilis, cancros, herpes, vaginoses, condilomas, reforçando a ideia de corpas sujas e vergonhosas. Na adolescência algumas garotas têm acesso à indústria pornográfica, na qual as vaginas são usualmente depiladas e modificadas com procedimentos estéticos, bastante distantes das vaginas reais. Nesse ínterim, onde estamos construindo nossas identidades (ao mesmo tempo que somos construíd@s pela sociedade), nossas vaginas são massacradas violentamente, em casa, na escola, no trabalho, na rua, seja através de ações (agressões físicas e sexuais), palavras (piadas, abusos psicológicos), pelo silenciamento imposto socialmente, ou pela falta de conhecimento disseminada. Assim, internalizamos essas violências desde pequen@s, naturalizando-as, ou simplesmente resignamo-nos fingindo (ou tentando fingir) que não acontecem. O próprio nome vagina não contempla toda a nossa aparelha sexual, refere-se apenas ao canal que leva ao útero, ignorando a vulva (composta pelos grandes e pequenos lábios, clitóris, o monte pubiano, as glândulas de Skene e de Bartholin, o meato urinário e o orifício externo da vagina), e o próprio útero. Não temos um nome para designar tudo isso! Na ausência desse nome e diante da invisibilidade das palavras vagina e vulva não nos é possível falar sobre nossas corpas. Anulada a vagina, a mulher inteira é apagada. Em pleno século XXI, aqui no Ocidente, depois de tantas lutas e vitórias feministas, depois da libertação sexual dos anos 60, de tantas violências contra as mulheres reveladas e arduamente combatidas, quando o nome vagina é citado é recebido com risadas por qualquer faixa etária. No cotidiano somos bombardead@s pela mídia com imagens de corpas femininas praticamente nuas, mas a vagina nunca aparece (pense no Carnaval, nas revistas, outdoors, propagandas…). Impressiona que ainda atualmente com a presença de revistas femininas que pregam a liberdade sexual das mulheres com dicas para melhorar as performances sexuais, para “apimentar” sexualmente as relações amorosas, a vagina continue sendo um tabu. No documentário Clitóris, o Prazer Proibido (França, 2004) Hellen O´Conell (Urologista - Universidade de Melbourne) afirma que “é interessante até mesmo a falta de muitos apelidos para o clitóris. Dizemos frequentemente às meninas: - Você não tem um pênis. Quando muito lhes dizemos que elas têm uma vagina. Mas pouco é dito sobre o que há lá, reforçando a ideia Freudiana que as meninas têm inveja [do pênis]. Não acho que as meninas têm inveja por não ter pênis, mas é difícil quando dizemos a uma criança que ela não tem isso ou aquilo, como se lhe faltasse algo”. Em 2013, quando escolhi a temática das vaginas para produzir uma série de fanzines, ouvi de muitas amigas: - Tem que ter coragem! Esse comentário serviu-me de argumento para trabalhar no projeto, nascendo assim o Amo Minha Vagina, uma série de fanzines e intervenções urbanas que questiona a relação conturbada entre pessoas com vaginas e sua corpas, afinal, se mesmo no meu contexto afetivo que é bastante libertário a vagina ainda mostrava-se um tabu, falar sobre ela certamente era importante. Simone de Beauvoir, em Por uma moral da ambiguidade (1947), alega que “O indivíduo é definido apenas por sua relação com o mundo e com outras pessoas, ele só existe por transcender a si. E sua liberdade só pode ser alcançada através da liberdade dos outros”. A relação com o mundo e com os outros que define-nos como indivíduos a qual Simone aborda dá-se através da linguagem na sua materialidade, a língua. As línguas são vivas e mudam como mudam as gerações, as ideologias, as eras políticas, ou seja, com o tempo. Transformamos palavras, descartamos umas que não nos servem mais, descobrimos ou incorporamos outras que façam mais sentido nas nossas diversas realidades. A linguagem, além de exprimir nossos pensamentos, os constitui através das nossas relações com os outros e com o mundo. É a partir dessas relações que apropriamo-nos e internalizamos palavras, discursos, gestos, tudo o que nos rodeia, enfim, e o modo como o fazemos. Ouvir e falar com outras mulheres e corpas dissidentes com vagina legitima nossas experiências. Questionar a naturalização da invisibilidade acerca da vagina traz à tona o enredo da história das mulheres, assim como as relações de poder às quais somos submetidas. Urge, então, a necessidade de usar e ressignificar a palavra vagina de acordo com nossas próprias experiências, pelas nossas palavras, com as nossas linhas. Gabamo-nos por rejeitar a mutilação genital feminina que é tradição em algumas regiões do Oriente (em algumas culturas acredita-se que uma mulher não circuncidada não será capaz de dar à luz, ou que o contato com o clitóris é fatal ao bebê, e ainda, que a mutilação melhora a fertilidade da mulher, por exemplo). Contudo, aqui no Ocidente não estamos distantes dessa prática: Nos EUA, já foram feitas mais de 1,5 milhão de cirurgias plásticas na genitália feminina para alcançar um padrão determinado de beleza. No Reino Unido, 1,2 milhão. No Brasil, médicos apontam um crescimento de 50% nos últimos anos. “A plástica íntima representa uma verdadeira conquista para a mulher moderna e independente, que agora ganhou a liberdade de escolher se deve ou não melhorar a estética de sua intimidade” é o argumento de um site de cirurgia plástica para justificar a mutilação por aqui. No mesmo site podemos encontrar fotos e desenhos de como uma ‘vagina normal’ deve ser, e uma lista de características das vaginas encaradas como problemas estéticos. Uma das causas comuns de infecções vaginais é a lavagem excessiva da região, reflexo direto do imaginário patriarcal da vagina como algo sujo, fedido, imundo. Sendo que a vagina saudável é o lugar mais limpo do corpo, muito mais que a boca ou qualquer região. Aprendemos que o prazer sexual só é possível com outra pessoa (em geral aprendemos também que essa pessoa deve ser um homem), não nos é dada a possibilidade da masturbação, não é explicada a presença ou função do clitóris, um órgão que tem a exclusiva finalidade de gerar prazer. Temos acesso restrito às nossas próprias corpas, à nossa história, às nossas potencialidades. Por consequência dessas reflexões tenho fomentado o Amo Minha Vagina com a produção de fanzines, cartazes, lambe-lambes; participando de feiras e eventos em Santa Catarina; divulgando-o na internet através das redes sociais. E para 2015 estão previstas diversas atividades. Para desenvolver o projeto conto com doações de fotografias de vaginas reais e de depoimentos acerca da relação das pessoas com suas vaginas (acontecimentos cotidianos, descoberta do clitóris/ do prazer sexual, sobre menstruação, masturbação, relações sexuais, doenças, conexões com a natureza, entre tantos outros, a temática é vagina, o desenrolar do texto é livre). Para participar enviando fotografias e/ou depoimentos mande um e-mail para contatoamominhavagina@gmail.com. Esse material é destinado para publicação em fanzines e no tumblr, divulgados sempre anonimamente (a não ser que @ autor@ queira identificar-se). LÓRI é o selo que levam as minhas produções artísticas, para conhecer mais visite: www.facebook.com/pontolori. Aqui no Tumblr você encontrará registros e materiais do Amo Minha Vagina, assim como informações, textos, imagens e poesias que vão ao encontro da perspectiva de ressignificação e apropriação das narrativas sobre a vagina. Pela autonomia das nossas corpas, sexualidade, histórias e vidas. Pela transformação do tabu em totem. Por vidas plenas, livres e libertadas. Amo Minha Vagina. Mirelle Mei [Artista independente, Professora de Português, Contadora de Histórias, Fanzineira e Bruxa. Cria e produz, desde 2011, fanzines na estética riot grrrl. Dedica-se atualmente aos estudos de gênero, subjetividades, poesia, memória e literaturas da oralidade.]

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